Nem tudo corria sempre mal.
O edifício ostentava um luxo invulgar para esta cidade e muito diferente de outros escritórios por onde tinha passado antes.
Dois funcionários, uma senhora e um cavalheiro, requintadamente fardados, uma apresentação impecável e evidente boa educação, instruíam os visitantes sobre as normas e procedimentos de acesso ao interior do prédio.
Rigorosa segurança à entrada. A emissão de um cartão magnético de visitante contra a apresentação de um cartão de identificação pessoal era antecedida de uma pequena conversa, onde as regras eram explicadas minuciosamente. Em anexo, era passado um formulário encaminhando o visitante ao visitado, que depois de assinado por este, teria que ser devolvido à saída.
Entretanto, dei a conhecer que durante toda esta semana eu seria visita diária, perguntando se haveria algum modo de evitar esta demora todos os dias. Um alargado sorriso preencheu a face da bonita senhora e disse-me:
- Ah…o senhor devia ter informado isso, antes mesmo…!
Explicou-me então, que para hoje resolvíamos a situação desta maneira, mas que durante o dia seria emitido um permit temporário para o resto da semana, a ser-me entregue durante a tarde. Fiquei deliciado com tamanha amabilidade, e com o sorriso também.
Para entrar, tive que introduzir o cartão numa ranhura frente a um gradeamento, activando um sinal luminoso, avisando que uma porta rotativa encastrada no gradil, estaria liberta para eu passar. Empurrei a porta giratória, recolhi o cartão já no lado de dentro, atravessei um pequeno hall, e depois de ultrapassar um par de portas de vidro grossíssimo, acedi a uma enorme e bem decorada sala de recepção. Aqui, era já esperado por outra elegantíssima funcionária que me cumprimentou com simpatia, informando-me que o Sr. Director Mendes Janela estava a me aguardar. Entrámos no elevador e subimos juntos, lado a lado. Cindy era o seu nome – estava escrito na lapela. Sorriu, quando tratando-a pelo seu nome, lhe perguntei se costumava aqui faltar a energia eléctrica. Alargou o sorriso e deixando mostrar uns dentes branquíssimos, respondeu:
- Simmm…mas temos gerador! – e sorriu ainda mais.
Chegámos ao sexto piso sem qualquer sobressalto. Saímos do elevador e conduziu-me a uma sala de espera, pedindo-me que aguardasse até o Sr. Director chegar. Ofereceu-me um café que aceitei de boa vontade. Regressou daí a minutos com o café, pousou a chávena e o pires em cima de uma mesinha de centro e quando ia para se retirar, agradeci:
- Muito obrigado Cindy.
- De nada por isso – respondeu com mais simpatia ainda.
Comecei a constatar que aqui as expressões verbais também são diferentes…mas muito agradáveis. Sentia haver pureza no trato e uma amabilidade natural no gesto.
Fiquei sozinho na sala e enquanto tomava o café, ia observando as fotografias colocadas nas paredes, mostrando a actividade da empresa, as instalações de produção e os painéis publicitários.
Algumas pessoas que passavam no corredor manifestavam intenção de entrar na sala, mas dado a minha presença, davam-me os bons dias e retiravam-se. Passados alguns minutos, surgiu a simpática Cindy, convidando-me a acompanhá-la ao gabinete do Sr. Director.
Acompanhei-a pelo extenso corredor caminhando atrás dela e observando os elegantes movimentos do seu corpo, reforçados pelo efeito dos altos saltos dos sapatos. Muito elegante esta Cindy.
Chegados à porta do gabinete, bateu com as nozes dos dedos e fez-me sinal para entrar. Saiu, sem antes trocarmos um afectuoso sorriso, dizendo-me que, num momento estaria já aí o Director.
E assim foi. De uma porta lateral, surgiu o Dr. Janela a estender-me a mão enquanto pedia desculpa pelo atraso, mas o trânsito estava demais…cada vez pior…não se sabendo aonde isto iria parar.
Para mim não havia qualquer problema já que o hotel onde estava hospedado era no outro lado da avenida. Elogiou a minha sorte e lamentou a sua tormenta.
O gabinete era sumptuoso. Mobiliário clássico em madeira nobre, toda maciça e cadeiras forradas em pele de altíssima qualidade. Fiquei deslumbrado.
Sentámo-nos e começámos a falar do trabalho que me trazia aqui. Esta semana estava assente que eu me dedicaria ao planeamento dos trabalhos em conjunto com um dos seus colaboradores, e na próxima semana executaríamos os trabalhos entretanto planeados, na instalação de produção situada noutra cidade, a uma centena de quilómetros daqui, da capital. Nessa altura já cá estaria o resto da minha equipe , que em conjunto com os técnicos locais, executariam a alteração ao processo produtivo da referida instalação, objecto da nossa presença.
Para já reuniríamos todos os dias às catorze horas para avaliar a planificação, analisar os constrangimentos, verificar a logística, pretendendo antever tudo o que de mais pudesse influenciar a realização do nosso trabalho. Começaríamos hoje mesmo.
O Dr. Mendes Janela pegou no telemóvel para fazer uma chamada. Assim que atenderam do outro lado, disse em tom autoritário:
- Alcino…vem ao meu gabinete! – e desligou.
Entretanto foi-me explicando que o engenheiro Alcino era a pessoa com quem eu iria trabalhar durante todo este período, na dita planificação.
Daí a pouco apareceu o Alcino. Fomos apresentados e cumprimentámo-nos. O Dr. Janela fez questão de explicar minuciosamente o objectivo do trabalho e a eficiência com que o mesmo teria de ser feito. Falhas…eram inadmissíveis. Depositava toda a confiança, mas também toda a responsabilidade em nós.
Pareceu-me que o Alcino tinha antecedentes de laxismo, e este era um severo aviso para a sua pessoa. Saímos do gabinete do Director e ao caminharmos para aquele que iria ser o meu local de trabalho, perguntei ao Eng. Alcino:
- Você já tem alguma coisa feita?
- Aiiiinda! – exclamou em tom comprometido.
- Desculpe…não entendi. Aiiinda…o quê? – pedi para esclarecer.
- Ainda não! – esclareceu.
- Nada? – reforcei.
- Nada mesmo – concluiu o Alcino.
Agora que estava completamente esclarecido, comecei a interiorizar o que me apareceria pela frente. Entrámos numa sala de grandes dimensões, cujas paredes estavam forradas de estantes carregadas de dossiers. Numa enorme mesa estavam já abertas algumas pastas com aspecto de terem sido desfolhadas à pressa numa precipitada busca de elementos. Sentámo-nos à mesa. Eu de um lado e o Alcino no outro. Empurrou um dossier na minha direcção e disse com voz esganiçada:
- Está aqui tudo. Esta é a sua “bíblia”.
Puxei a pasta para mais perto e passando a vista aleatoriamente pelo conteúdo da mesma, constatei já ter em minha posse a informação aqui contida, e observei:
- Estes dados já os tenho comigo. Foi isto que vocês me enviaram para Lisboa.
- Oh…melhor ainda! – exclamou o Alcino com satisfação – nesse caso já temos o trabalho feito.
Abri o meu portátil e pedi que se sentasse ao meu lado. Liguei o computador e comecei a mostrar-lhe o trabalho que já tinha preparado. Os olhos de Alcino brilhavam de satisfação.
- Tá tudo aí…tá tudo aí!
- E os materiais onde estão? – perguntei.
- Vão chegar! – exclamou, quase guinchando.
- Vão chegar? Quer dizer que ainda não chegou cá nada?
- Já chegou tudo…falta só subir – respondeu na maior das calmas.
- Vão subir para onde? – questionei com evidente preocupação.
- Sim. Vão logo para a fábrica. O transitário trata disso – concluiu.
- Então é melhor eu imprimir o cronograma que tenho aqui e analisamos em conjunto, pode ser?
- Siiiimm…mas hoje não. Tenho que ir à clínica. A minha mulher tá passando mal, e a deixei na clínica pra fazer uns exames. Agora vou lá. Volto logo.
E saiu.
A porta ficou aberta. Comecei a sentir sede. Precisava urgentemente de beber água. Caminhei pelo corredor olhando para um e outro lado, e para minha felicidade, cruzei-me com Cindy. Pedi-lhe para me dizer onde podia encontrar uma garrafa de água, e ela levou-me a uma copa onde num frigorífico estavam várias garrafas, informando-me que era melhor eu levar uma garrafa e um copo para a sala onde me encontrava a trabalhar. Pelo caminho ia recebendo e distribuindo bons dias, aos quais me respondiam com um “bom dia sim…obrigado”. Depois perguntei a Cindy onde poderia imprimir uns documentos, ela conduziu-me à sala onde trabalhavam os informáticos e apresentou-me o Nuno, a pessoa ideal para me ajudar em tudo o que tivesse a ver com computadores.
O mobiliário e o equipamento informático eram do melhor que existia actualmente no mundo. Nem na Europa se conseguia encontrar muitas empresas com equipamento de tamanha qualidade. Era tudo topo de gama. Sinceramente, estava impressionado.
Com a ajuda do Nuno, rapidamente imprimi toda a documentação, e passei o resto da manhã a ver as pastas do projecto e a comparar o seu conteúdo com o meu cronograma. Confirmei todos os itens e pareceu-me que pouco mais haveria que fazer, a não ser aguardar pelo eng. Alcino ou falar com o Director.
O grande volume de trabalho seria na unidade de produção, e na minha perspectiva seria para lá que eu me deveria deslocar o mais rápido possível.
Depois do almoço reapareceu o Alcino e transmiti-lhe a minha intenção de nos devermos deslocar para a fábrica. Teríamos reunião às catorze horas, e isso mesmo eu transmitiria ao Director. Ele concordou.
E o Director Janela achou a ideia muito positiva. Assim no dia seguinte viajei com o eng. Alcino para a cidade onde se situava a unidade de produção da empresa. Saímos da capital às quatro horas da manhã para evitar a barafunda do trânsito e chegámos por volta das onze horas. Indicaram-me as instalações onde ficaria alojado e fomos almoçar. Depois do almoço reunimos com a direcção-geral da unidade e estabelecemos o calendário de trabalho: uma reunião às oito e quinze com a engenharia, outra às treze e trinta com a produção, e ainda outra às dezasseis horas com a task-force da qual eu fazia parte integrante.
O nosso local de trabalho situava-se num pavilhão a meio caminho entre o edifício administrativo e a área de produção. Para fazer este percurso era necessário passar por três postos de controlo e estar devidamente identificado e equipado com a farda de trabalho.
Partilhava uma sala com outros dois engenheiros, a qual dava acesso a outro compartimento onde trabalhavam seis técnicos especialistas.
Aqui existia uma rede informática, onde uma única impressora situada numa outra sala um pouco distante destas, era partilhada por nós todos. Cada vez que alguém “printava” um documento, tinha que sair do seu posto de trabalho, atravessar o pavilhão e entrar na sala onde estava a impressora. Aqui trabalhavam dois funcionários administrativos de idade avançada, que tiravam as fotocópias e distribuíam afectuosos cumprimentos.
A minha chegada fez aumentar o número de documentos a imprimir, já que para todas as reuniões eu teria de levar documentação actualizada e distribuir por todos os presentes. No meu segundo dia de estadia o tonner da impressora ficou vazio, e assim já não foi possível distribuir mais informação actualizada, em papel.
Simpaticamente foi-me pedido para ter paciência, e que este problema seria resolvido rapidamente. Assim, na primeira reunião do dia seguinte, actualizámos a informação em cima do último documento produzido anteriormente. Alguns funcionários protestaram com a demora da substituição do tonner, mas o engenheiro chefe informou que o armazém já estava informado e a tratar do assunto.
Na segunda reunião, comunicou-se à equipe de produção que infelizmente não trazíamos dados actualizados em forma de papel devido a problemas na impressora, mas que no dia seguinte ficaria tudo normalizado. O Director de Produção disse que poderíamos enviar a informação por e-mail e que ele próprio encarregaria alguém do seu sector para a imprimir e fazer-nos chegar os mapas até o problema estar resolvido. Para nós e para eles este problema estava ultrapassado.
Na terceira reunião desse dia a situação agravou-se quando um dos técnicos especialistas ameaçou recorrer à presidência da administração, caso o problema do cartucho não fosse resolvido até ao meio dia seguinte.
Mais uma vez o engenheiro chefe informou que estavam a fazer todos os esforços para adquirir o tinteiro ou cartucho…como lhe queiram chamar…mas tinha sido um erro do armazém que não tinha processado a encomenda, quando o stock baixou do mínimo.
Durante o dia seguinte, ninguém falou no assunto, tendo em conta o empenho das chefias em ultrapassar o problema, o qual já provocava evidentes sinais de estado de nervos nas pessoas envolvidas. Mas o tonner da produção também acabou e ambos os departamentos passaram a conviver com a mesma dificuldade. A solução passou a ser cada um actualizar os dados na última folha existente, e assim tudo o que era espaço em branco, passou a estar preenchido com apontamentos em diversas cores, de modo a não provocar maior confusão.
Era manifesta a cumplicidade dos dois departamentos na pressão sobre o armazém e o sector de compras, e assim já ninguém incomodava as chefias com este problema.
Custava-me a crer que uma empresa com o elevado nível de sofisticação que estava patente na sua sede, na capital, pudesse aqui apresentar tamanha dificuldade para a substituição de um tinteiro na impressora, e ao mesmo tempo, porque a mesma e única impressora servia tanta gente.
No dia seguinte, logo na primeira reunião, após a análise dos trabalhos, já poucos conseguiam ler o que tinham escrito nos dias anteriores, e menos espaço ainda sobrava para acrescentar fosse o que fosse, já que as costas das folhas estavam já cheias de gatafunhos.
Antes de dar por finda a reunião, o engenheiro chefe perguntava sempre se alguém tinha algum assunto a acrescentar. Um dos presentes levantou-se e voltou a pôr a questão do cartucho. De imediato o engenheiro também se levanta e pergunta:
- Ó Mesquita? Tu pensas que eu ando aqui a brincar com esta situação? Pensas isso?
- Não chefe…mas eu tou a ficar com problema – respondeu o Sr. Mesquita, arrastando a voz, com evidentes sinais de cansaço, devido à idade avançada.
- E achas que eu não ando a fazer tudo para resolver este problema? Este problema é muito grave, ok?
- Não é isso que eu tava a querer dizer…
- Olha!…olhem vocêses todos!…essa preocupação, eu levo todos os dias à reunião da direcção geral – gritava o chefe, deixando transbordar a sua elevada exaltação – podem até perguntar à engenheira Amélia…foi ela ontem que fez a acta da reunião…e ficou lá registado, agora vocêses querem que faça o quê? O problema agora tá lá na directoria!
O silêncio encheu a sala depois do engenheiro chefe parar de gritar e de bater com a palma da mão na mesa. Mas o Sr. Mesquita ainda não tinha terminado de expôr as suas razões e acrescentou:
- …é que eu esqueço que esse maldito cartucho tá vazio, mando imprimir e depois faço aquela caminhada toda e não tem lá nada, depois volto e esqueço que esqueci…e volto lá outra vez, chego mais cansado ao fim do dia de caminhar pra lá…do que trabalhar…mas comigo esta empresa não pára mesmo.
Uma delícia este Mesquita.
Mas a empresa quase parava mesmo, pois o Director-Geral decidiu que fosse feito um levantamento de todas as necessidades de cartuchos para impressoras e fotocopiadoras, antes de accionar a encomenda.
Felizmente, num golpe genial, o eng. Alcino depois de ir novamente à clínica visitar a esposa, decidiu passa na Sede da empresa na capital e subir com um montão de cartuchos para todos os gostos e feitios.
O trabalho só atrasou uma semana.
Texto original
Autor: João Carvalho
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2 comentários:
Como eu compreendo esta situação...Onde é que já vi isto?
Pois, foi lá onde tudo se "agilisa",e onde se fica "incomodado" com tanta rapidez "atrás do prejuizo" e ficamos com uma "preocupação" por "aínda" nada se resolver...
E eu? Tb entendi isso tudo.Eh,Eh,Eh,eh....Mas já há muito tempo que não escreves nada.
Deita mãos à obra!Fico à espera.
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