caescomsorte
terça-feira, 22 de março de 2011
O BIDON
Embora nem sequer soubesse o que era um serralheiro, e muito menos o que fazia um serralheiro – aquela frase ficar-lhe-ia gravada na memória para o resto da vida.
Ainda menino de escola, quando alguém lhe perguntava o que ele queria ser quando fosse grande, a resposta era pronta e imediata – serralheiro mecânico. Nem piloto de aviões nem jogador de futebol. Tinha que ser serralheiro mecânico, e não admitia discussão
Talvez não fosse de todo estranho, o facto de no fundo da sua rua haver uma oficina de reparação de bicicletas e motorizadas, e o Job Jeremias passar por lá, muito do seu imenso tempo livre na brincadeira e até a fazer pequenos recados aos homens que aí trabalhavam: levar cerveja e cigarros.
Seria bem provável que lá tivesse ouvido pela primeira vez o termo da sua ambição, depois reforçado pelo comentário do pai.
Quando os mais velhos estavam bem-dispostos e com pouco trabalho, ensinavam Job a pegar num alicate e a dobrar arame, para que ele aprendesse a fazer bicicletas em miniatura. Num ápice, ele passou a fazer motas, bicicletas, jipe e camiões, numa tal perfeição que deixou os mais velhos surpreendidos e envaidecidos.
Para Job a escola acabou cedo. Fez só o básico. O pai faleceu e a mãe não tinha condições para manter quatro filhos na escola. Ela começou a vender pão pelas ruelas do musseque e Job Jeremias e os três irmãos mais novos iam atrás dela, brincando e ajudando a mãe quando ela o chamava.
Um dia, ao passarem junto da oficina das motorizadas e bicicletas, um dos mecânicos mais cota chamou-os e pararam para conversar:
– Olha senhora, esse menino leva jeito prá mecânico! Melhor mesmo é a senhora deixar ele aqui prá aprender – disse, apontando para o filho mais velho.
– Acho que este menino tem jeito, mais é prá vadio! – respondeu a mãe.
– Eiii senhora…não fala assim…esse garoto tem talento! – intercedeu o cota.
– Ele aí?…no meio de vocêses fica mais vadio ainda – insistiu a mãe.
– Deixa ele com a gente. Vai ser um bom serralheiro mecânico.
Os olhos de Job encheram-se de brilho e arregalaram-se de tal maneira que parecia querem-lhe saltar das órbitas. Aproximou-se da mãe e disse:
– Fico agora mesmo! – impôs.
E ficou.
Primeiro atribuíram-lhe tarefas simples, tais como, lavar peças, limpar os diversos utensílios e arrumar a oficina no fim de cada dia. Progressivamente começou a aprender o nome correcto de todas as ferramentas, saber para o que serviam e como as utilizar. Ao fim de três meses já fazia pequenos trabalhos de diminuta responsabilidade. Ensinaram-lhe primeiro a desmontar rodas e guarda-lamas e montá-las, e a reparar pneus furados. E assim, para compensar o seu empenho e dedicação, foi-lhe conferido um pequeno salário.
Era a primeira vez, desde a morte do pai, que entrava em casa algum dinheiro, sem ser fruto do parco negócio da venda de pão que a sua mãe continuava a fazer pelo musseque, cada vez com mais dificuldade e maior concorrência.
Apesar dos seus doze anos de idade, Job sentiu um enorme orgulho quando entregou o dinheiro à mãe. Ela abraçou-o, e sem conseguir conter uma lágrima, disse:
– Agora, tu não é só o meu filho, tu é o homem da casa!
O menino pareceu entender a responsabilidade desta nomeação. Olhou para os irmãos que brincavam na rua com os carrinhos de arame que ele mesmo tinha feito, e depois comentou:
– Sim…vou ser mesmo.
E assim passou cerca de um ano. Á medida que crescia aumentavam os seus conhecimentos de mecânica e amadurecia para homem.
Um dia apareceu na oficina um agente da polícia de trânsito empurrando a motorizada pela mão. Os cotas tinham tomado umas cervejas e acabaram a dormir no barraco das traseiras. Job estava sozinho a trabalhar, e quando viu surgir a autoridade foi em sua ajuda.
– Não trava – disse o agente.
– Eu dou um jeito – respondeu Job prontamente.
Nada mais fácil. Prendeu o cabo que estava solto no travão de pé e afinou o travão da frente. Quando já dava por terminado o seu trabalho, o polícia perguntou:
– Quantos anos tens tu garoto?
– Ahh…vou fazer uns catorze! – exclamou, sorrindo com orgulho.
Nesse meio tempo surgiu meio a cambalear um dos patrões, acabado de acordar com o barulho do motor, quando Job pôs a motorizada a trabalhar. O polícia virou-se para ele e disse:
– Esse menino não tem idade para trabalhar…isso é exploração e dá multa. Até pode dar o fecho do estabelecimento!
E Job ficou sem emprego.
Deixou de ir á oficina. Os cotas explicaram que, afinal, era perigoso dar trabalho a garotos, até mesmo que fosse só para ensinar, e Job não podia continuar lá. Só podia voltar lá quando fizesse os catorze anos, e com um papel assinado pela mãe a dar autorização para poder trabalhar.
Chegou a casa, triste e cabisbaixo. Quando a mãe lhe perguntou o que se tinha passado, o menino agarrou-se a ela e desatou a chorar compulsivamente.
– Fez asneira, filho? – perguntou a mãe.
– Não mamã…nada – respondeu entre dois soluços.
– Então?
– O polícia não deixa eu trabalhar lá…ameaçou fechar a oficina, e o mais velho diz que eu tem que ficar à espera dos catorze anos.
– Ehh…não chora por isso menino…logo logo vai voltar lá…
Job esfregou ambas as costas das mãos nos olhos, e depois de os limpar, sorriu e apertou a mãe com mais força ainda.
– …e agora vai brincar com os teus irmãos…mais logo a gente vai vender o resto do pão.
E voltou tudo ao antigamente. Todos os dias, antes das seis da manhã, mãe e quatro filhos saiam de casa para a venda do pão pelo musseque. A mãe carregando o pão num enorme alguidar de plástico na cabeça, e agora Job já ajudava, levando também ele, um saco às costas. Aos clientes habituais, apanhados por esta surpresa, a mãe contava que o filho iria continuar a trabalhar logo que fizesse os catorze anos. Os mais velhos compadeciam-se pela situação e os mais novos troçavam da mesma. Afinal o serralheiro virava padeiro.
Job sentia-se ferido no seu orgulho, mas não respondia às provocações. Às vezes apetecia-lhe dar uns tapas naqueles que zombavam dele, mas a mãe chamava-o à razão e ele passava a ignorá-los.
Durante o dia, Job nada mais fazia do que andar pelo musseque. Caminhava longas horas, umas vezes sozinho, outras vezes acompanhado por um dos irmãos.
Num desses passeios, foi até a um terreno onde costumava jogar futebol com os amigos. Mas para sua grande surpresa, já ninguém mais podia lá jogar à bola. Estavam a fazer umas obras muito grandes, lá mesmo, dentro do musseque.
Vieram uns homens brancos que falavam uma língua esquisita que ninguém entendia. Chegaram muitos camiões com caixotes de ferro bem grandes, e vieram umas máquinas grandes…grandes mesmo…como ele nunca tinha visto.
Job deixou de passear, e logo que terminava a venda do pão com a mãe, ia passar o resto do dia ali com os amigos, a olhar para toda aquela movimentação.
Primeiro começaram os pedreiros a fazer uma vedação de arame farpado à volta do terreno, enquanto lá dentro, umas máquinas a que ele e os outros garotos chamavam de girafas, tiravam os caixotes de cima dos camiões e pousavam-nos no chão. Mais tarde veio a saber que aqueles caixotes se chamavam contentores, e afinal, a girafa tinha o nome de grua.
Um dia começaram a aparecer camiões carregadinhos de tábuas de ferro. Mas não eram lisas e direitas como as das portas. Umas eram parecidas com as linhas do caminho-de-ferro e outras eram bem mais estranhas.
Começaram a construir um barracão muito grande. Nada tão alto tinha alguma vez sido feito no musseque. Os camiões traziam muito ferro, e as máquinas grandes punham o ferro de pé.
Os garotos assistiam e faziam prognósticos.
O mistério ficou desfeito quando apareceu pendurada num poste uma placa, onde estava escrito:
“Precisam-se de pedreiros, serralheiros e soldadores, e ajudantes também”
Os olhos de Job voltaram a brilhar. Correu para casa e contou à mãe a grande novidade. Agarrou a mãe pela mão e pediu para ela ir ver, e falar com o chefe de lá, para ele ir trabalhar. A mãe disse que ainda faltava uns dias para ele fazer os catorze anos, e ainda era cedo, não valia a pena ir já. Ficou prometido, que logo no dia a seguir aos anos, iriam os dois para falar com o chefe.
E apareceria alguém que vai mudar a vida de Job.
O chefe Ferreira, como toda a gente o tratava, já estava em Angola há mais de vinte anos. Mas muito mais! Nem ele próprio sabia ao certo há quanto tempo por ali andava. O que ele sabia é que já não podia passar sem isto, e regressar de vez a Portugal estava fora de questão.
Tinha mulher e filhos em Sacavém, e outra mulher e mais filhos no Cacuaco. Ambas as famílias sabiam da existência uma da outra, e não havia maca. Passava as férias em Portugal, e a cada viagem levava um dos filhos angolanos, desde que não estivessem em período de aulas. O mais difícil foi quando a mulher de Portugal soube da existência dos três rapazes angolanos, porque durante anos sabia só da existência de um. Houve ameaça de separação e até de divórcio. Mas os filhos portugueses conseguiram apaziguar as coisas e com uns “tenham lá juízo e deixem-se disso”, tudo voltou a ser o que era.
O Ferreira falava pelos cotovelos, com lentidão mas em bom som. Pouca gente tinha paciência para o ouvir, mas ele falava na mesma. De nada servia pedir para se calar. Ele continuava a falar em voz alta consigo próprio, ria-se para si mesmo, e nada o fazia parar a não ser que quisesse.
– Quem não quiser ouvir que tape os ouvidos! – exclamava, mesmo que ninguém lhe perguntasse alguma coisa.
Tinha sido nomeado para a equipe de recrutamento e selecção do pessoal, em conjunto com outro encarregado angolano – o Pacavira, e não lhe faltavam dotes de perito na matéria:
– Assim que os gajos abrem a boca, tiro-lhes logo a fotografia – dizia com orgulho e vaidade.
No lado de fora da vedação, havia desde as sete da manhã uma enorme agitação. Uma extensa fila de candidatos aos postos de trabalho disponíveis, aguardavam impacientemente que começassem a ser chamados para o ambicionado emprego.
Assim que saiu do contentor que funcionava como refeitório, após tomar o mata-bicho, o Ferreira estancou-se, e ao ver a dimensão do burburinho, gritou:
– Mas estes gajos sabem o que é que estão a fazer?
Chamou dois homens dos que guardavam a entrada do estaleiro e disse-lhes:
– Avisem essa malta que hoje só vamos admitir pedreiros, ok? Amanhã serralheiros, ok? O resto vai ficar para a semana, ok? – gritava pausadamente, para que não restassem dúvidas.
Os outros acenaram com a cabeça e puseram a circular a informação. Mas de pouco serviu, porque ninguém arredou pé.
O Ferreira acendeu um cigarro, e compôs o capacete de modo a vedar a fresta por onde entrava o sol que lhe batia nos olhos, por cima dos óculos escuros. Assim via melhor a dimensão do alvoroço. Decidiu caminhar para junto da fila e gritou:
– Hoje só vamos meter pedreiros! Quem não é pedreiro volta amanhã, ok? Estamos entendidos? – reforçou.
Alguns, poucos, começaram a desmobilizar, saindo da fila, mas ficando nas redondezas para assistir ao desenlace desta confusão.
Quem também abandonou a fila foi Job Jeremias. Desatou a correr em direcção a casa, a ver se ainda chegava a tempo de ir ajudar a mãe. Esta e os irmãos já tinham saído, mas ele sabia qual era o percurso habitual deles e apanhou-os daí a pouco.
A mãe nem lhe perguntou onde é que ele tinha andado porque já imaginava a resposta.
No dia seguinte, levantou-se às quatro da manhã e saiu logo para o “estaleiro dos americanos” – nome com que passou a ser conhecida aquela instalação. Foi o primeiro a chegar e assinalou logo a sua vez na fila, avisando os guardas que estava à espera que chamassem para dar trabalho.
Os guardas riram-se, e meio a brincar, meio a sério, disseram-lhe que era melhor voltar para casa e ir dormir. Job manteve a sua posição:
– Sou o primeiro…hoje mesmo vou falar com o Chefe, e vou ser o primeiro serralheiro daqui! – exclamou com convicção.
A fila começou a engrossar de imediato. Ainda não eram sete da manhã, e mais de duzentos candidatos já se perfilavam na tentativa de alcançar o desejado posto de trabalho.
Hoje o esquema das entrevistas estava melhor organizado. Entravam dez candidatos de cada vez. Um dos guardas conduzia-os ao contentor que servia de sala de entrevistas, e esperavam à porta…massacrados pelo intenso calor que se fazia sentir.
Job Jeremias resistiu a todas as tentativas de ser ultrapassado na fila e refutou todas as provocações e insinuações de que foi alvo.
Às sete e meia em ponto, saiu um berro do contentor:
– Entra o primeiro! – era a voz do chefe Ferreira.
O miúdo bateu à porta, espreitou e entrou sem receio, apresentando-se:
– Sou Job Jeremias…serralheiro mecânico!
Os membros da equipe de selecção olharam uns para os outros e sorriram. O chefe Ferreira não se conteve:
– Enaa…isto hoje começa bem! – e riu-se.
O outro, o Pacavira, também riu desmesuradamente.
– Ora, então tu és o Jeremias?
– Sim senhor, Job Jeremias…serralheiro mecânico! – exclamou com elevação.
Ambos os entrevistadores ficaram em silêncio, perturbados com a convicção do rapaz. O Ferreira voltou à carga:
– Sabes trabalhar com um martelo?
– Sim senhor! – respondeu peremptoriamente.
– Sabes o que é uma marreta? – insistiu o Ferreira.
– Sim senhor…é um martelo mais pesado! – nada mais fácil.
– Sabes apertar um torno de bancada?
– Sim senhor…aperto com as duas mãos quando é preciso mais força.
– Quantas mãos são precisas para agarrar num alicate? – insistiu o Ferreira
– Vai do tamanho do alicate…se for dos grandes tem que ser as duas! – esclareceu
– Bonito serviço! – exclamou o chefe Ferreira – basta só olhar para ti para ver que és serralheiro – disse com ironia. E acrescentou – mas só por seres o primeiro a ter cá chegado, vais ter um prémio…ficas ajudante, ok? Estamos entendidos?
– Sim senhor! Sim senhor!
– Começas amanhã!
Um brilho maior que o do sol espelhou-se na cara de Job. Saiu do contentor desorientado de alegria. Cambaleando de felicidade, descreveu um círculo trocando as pernas, antes de conseguir ver onde era a saída por onde tinha entrado. Desatou a correr e só parou quando chegou ao pé da mãe.
– Amanhã trabalho lá…o senhor chefe Ferreira me aceitou! – exclamou mantendo o braço apontado para o céu.
– Tá doido menino! Que chefe é esse?
– É no estaleiro dos americanos…amanhã começo lá a trabalhar de ajudante – explicou como se da maior conquista se tratasse – e depois vou ser mesmo serralheiro mecânico.
Era tal a convicção que colocava na explicação que, se alguma dúvida restasse, ela ficaria naturalmente dissipada.
No dia seguinte não haveria recrutamento. A opção foi integrar os trabalhadores já admitidos, dar-lhes o fardamento e explicar minuciosamente as regras de segurança da obra.
Essa tarefa foi incumbida aos dois encarregados. Os trabalhadores foram divididos em dois grupos. Os pedreiros ficam com o Pacavira, e os serralheiros com o Ferreira. Neste último grupo estava o único ajudante até agora admitido – Job.
Todos devidamente fardados, escutavam com a maior atenção as palavras de cada um dos chefes. Mas era o Ferreira que gritava em alto e bom som:
– Eh pá…vocês não se ponham a inventar…ainda se aleija alguém e depois estamos todos lixados. Primeiro vem sempre a segurança, ok? - e acrescentava - … seifeti fares-te, ok?
– Siiimmm – respondiam em coro.
– Estamos entendidos?
– Siiimmm – repetiam.
– Então…agora vamos ao trabalho.
Seguiram os passos do Ferreira em direcção à ferramentaria. Aqui seria distribuída uma caixa de ferramenta individual a cada um, e depois foram apresentados aos respectivos chefes de equipa, que lhes distribuiriam os trabalhos.
Só Job Jeremias não foi integrado no trabalho da serralharia. Continuou a caminhar atrás do chefe Ferreira à espera que este lhe atribuísse alguma tarefa. Vendo que estava a ser esquecido, colocou-se ao lado do chefe, de modo a atrair a atenção deste. O Ferreira olhou de lado para o rapaz e parou de caminhar. Voltou-se para ele e disse:
– Tu vais ali para aquele contentor separar umas caixas de parafusos, porcas e anilhas. Sabes o que é isso?
– Sim chefe! Eu sei! – exclamou com entusiasmo.
– Ok…por agora vai ser esse o teu trabalho. Estamos entendidos?
– Sim chefe!
O tempo ia passando e a alegria de Job aumentava de dia para dia, na esperança de poder vir a ser serralheiro. Sempre que podia, ficava a olhar os outros, admirando o seu trabalho. Uns cortavam chapa e vigas com o maçarico, enquanto outros davam acabamento aos cortes com as rebarbadoras.
O chefe Ferreira é que nunca estava desatento. Cada vez que atravessava a área onde o pessoal estava trabalhar, repetia os mesmos conselhos:
– Não quero que ninguém saia daqui aleijado! Muito cuidadinho com as rebarbadoras, ok? Seifeti fares-te, ok?
Como resposta obtinha sempre o mesmo coro:
– Siiimmm chefe!
Os meses iam passando, a obra ia crescendo e o volume de trabalho não parava de aumentar. O pessoal era já bastante, e o movimento no estaleiro aumentava desenfreadamente. A oficina central já estava construída, do armazém faltava pouco para concluir e a construção das habitações onde o pessoal iria residir evoluía a bom ritmo.
O chefe Ferreira queixava-se que já não dava para as encomendas. Almoçava à pressa, sem parar de se lastimar:
– Vocês vejam só? – comentava um dia ao almoço – hoje apareceu-me um gajo que já faltava à duas semanas.
Fez uma pausa para observar se alguém lhe estava a prestar atenção e continuou:
– Chegou como nada se tivesse passado, e começou a explicar-me que tinha tido muitos problemas, mas que agora estava tudo resolvido, e então, ia trabalhar a sério!
Despertados pela curiosidade, os colegas que estavam mais próximo pararam de comer para lhe prestar a merecida atenção. O Ferreira vendo que tinha captado o interesse da plateia, prosseguiu:
– Chamei-lhe a atenção. Disse ao gajo para ter juízo e não repetir a gracinha senão ia para o olho da rua. Ele sempre a dizer que sim…sim senhor…sim senhor. Então não é que o gajo, agora antes de vir almoçar, me aparece com o impresso a meter uma semana de férias a partir de amanhã?
Todos se riram com a exposição do chefe. Era de facto um bom actor, este Ferreira. Quem não entendeu nada da história foram os americanos que estavam sentados na outra ponta da mesa. Mas alguém traduziu, e eles acabaram por achar piada ao sucedido.
Vendo que tema da conversa estava a agradar aos colegas, continuou:
– Agora tenho aí um puto que é uma malha do caraças! O Job…fez há dias catorze anos. Olhem que eu ando nisto há muitos anos, e não me lembro de ter visto um miúdo assim, para trabalhar com vontade! – exclamou com profunda admiração.
Alguns dos presentes abanaram a cabeça em sinal de confirmação, visto já terem reparado nas capacidades do garoto. Mas o Ferreira não parava de falar:
– Mas estão aí alguns que até adormecem a andar…é cá com cada um!
Alguém o interrompeu:
– Oh Ferreira, mas deves ter aí também uns gajos do contra. Eu vi que num dos biombos dos soldadores alguém escreveu: “In land of blind, one eyed is king”, sabes o que isso quer dizer, não sabes?
– Em terra de cegos, quem tem um olho é rei, não é isso? – questionou o Ferreira.
O colega confirmou com um aceno de cabeça, e o Ferreira esclareceu:
– É que eles já sabem uma coisa que vocês não sabem! – exclamou com ar de desafio.
Esta observação fez com que quase todos parassem de comer e se concentrassem no Chefe Ferreira, aguardando pelo esclarecimento total do motivo daquele escrito na serralharia. E foi logo a seguir:
– É que eu só vejo de um olho. Este aqui – apontou com um dedo para a vista esquerda – é de vidro.
Todos os presentes riram a bom rir. Primeiro os que falavam português, depois os estrangeiros, após a respectiva tradução ter sido feita.
Há medida que acabavam de almoçar, as pessoas iam-se levantando para dar o lugar a quem esperava. Este espaço estava destinado aos encarregados e aos engenheiros, fossem eles angolanos, portugueses ou americanos. O restante pessoal almoçava num outro espaço, mais amplo, mas também já insuficiente para a quantidade de gente que estava na obra.
Aproximava-se o fim-de-semana, e constituíam-se vários grupos entre os expatriados portugueses e americanos, organizando-se passeios à praia e almoçaradas onde quer que calhasse, conforme o lugar fosse mais aprazível a uns e a outros.
Um dos responsáveis americanos sugeriu que se fizesse um barbeque numa praia. A ideia colheu quase a unanimidade dos presentes, mas teria que se fabricar um fogareiro para grelhar as carnes.
– Nada mais fácil – interveio o Pacavira – corta-se um bidon de duzentos litros ao meio e faz-se um excelente assador.
O próprio Pacavira encarregou-se de arranjar o bidon e tratar de fazer o fogareiro.
Encontrado o tambor de duzentos litros, aproximou-se de um dos vários chefes de equipa que tinham os serralheiros às suas ordens, e pediu para que fosse cortado o tambor a meio e ao alto, para fazer um fogareiro.
Nesse momento ia Job a passar com uma rebarbadora na mão, e o chefe de equipa gritou-lhe:
– Ei miúdo!
Job parou, e vendo que a chamada era para si, aproximou-se de quem o tinha interpelado.
– Olha…tás a ver aquele bidon…deita-o ao chão e corta-o ao meio, assim – ordenou, enquanto com a mão indicava a direcção em que pretendia o corte.
O pequeno Job, cheio de orgulho por lhe ter sido confiado um trabalho para um verdadeiro serralheiro, deitou o tambor ao chão e ligou a rebarbadora.
Assim que encostou o disco à chapa, e logo que este penetrou no interior do reservatório, sentiu-se um enorme estrondo de uma violenta explosão.
A tampa do invólucro projectou-se no ar atingindo um colega que se encontrava nas imediações, e o bidon deu um salto de tal forma violento, que embateu e perfurou a cobertura daquela área.
As chamas emanadas da explosão apanharam as pernas de Job Jeremias, fazendo-lhe saltar a roupa que trazia vestida.
De imediato surgiram extintores para apagar o foco de incêndio, e pessoas para prestar os primeiros socorros aos dois trabalhadores feridos.
Job e o colega foram evacuados para o hospital. Ele com queimaduras do segundo grau em ambas as pernas, e o outro com ferimentos e escoriações na face e no peito.
No local do acidente surgiram todos os engenheiros, encarregados, chefes de equipa e também o americano - director do estaleiro. Este ordenou de imediato um relatório preliminar e abertura de um inquérito.
Concluído o processo, veio a constatar-se que o referido reservatório continha restos de gasolina, e que nem a pessoa que o indicou nem quem ordenou o seu corte sabiam do seu conteúdo.
Assim sendo, a responsabilidade era do trabalhador que realizava o corte do bidon, por não ter tomado as devidas providencias no cumprimento das regras de segurança.
Job Jeremias foi despedido.
O chefe Ferreira apresentou a sua demissão.
segunda-feira, 20 de setembro de 2010
TARRAFAL - Campo de Concentração (Cabo Verde)
quinta-feira, 16 de setembro de 2010
Poznan - Polónia
domingo, 16 de agosto de 2009
O CARTUCHO
O edifício ostentava um luxo invulgar para esta cidade e muito diferente de outros escritórios por onde tinha passado antes.
Dois funcionários, uma senhora e um cavalheiro, requintadamente fardados, uma apresentação impecável e evidente boa educação, instruíam os visitantes sobre as normas e procedimentos de acesso ao interior do prédio.
Rigorosa segurança à entrada. A emissão de um cartão magnético de visitante contra a apresentação de um cartão de identificação pessoal era antecedida de uma pequena conversa, onde as regras eram explicadas minuciosamente. Em anexo, era passado um formulário encaminhando o visitante ao visitado, que depois de assinado por este, teria que ser devolvido à saída.
Entretanto, dei a conhecer que durante toda esta semana eu seria visita diária, perguntando se haveria algum modo de evitar esta demora todos os dias. Um alargado sorriso preencheu a face da bonita senhora e disse-me:
- Ah…o senhor devia ter informado isso, antes mesmo…!
Explicou-me então, que para hoje resolvíamos a situação desta maneira, mas que durante o dia seria emitido um permit temporário para o resto da semana, a ser-me entregue durante a tarde. Fiquei deliciado com tamanha amabilidade, e com o sorriso também.
Para entrar, tive que introduzir o cartão numa ranhura frente a um gradeamento, activando um sinal luminoso, avisando que uma porta rotativa encastrada no gradil, estaria liberta para eu passar. Empurrei a porta giratória, recolhi o cartão já no lado de dentro, atravessei um pequeno hall, e depois de ultrapassar um par de portas de vidro grossíssimo, acedi a uma enorme e bem decorada sala de recepção. Aqui, era já esperado por outra elegantíssima funcionária que me cumprimentou com simpatia, informando-me que o Sr. Director Mendes Janela estava a me aguardar. Entrámos no elevador e subimos juntos, lado a lado. Cindy era o seu nome – estava escrito na lapela. Sorriu, quando tratando-a pelo seu nome, lhe perguntei se costumava aqui faltar a energia eléctrica. Alargou o sorriso e deixando mostrar uns dentes branquíssimos, respondeu:
- Simmm…mas temos gerador! – e sorriu ainda mais.
Chegámos ao sexto piso sem qualquer sobressalto. Saímos do elevador e conduziu-me a uma sala de espera, pedindo-me que aguardasse até o Sr. Director chegar. Ofereceu-me um café que aceitei de boa vontade. Regressou daí a minutos com o café, pousou a chávena e o pires em cima de uma mesinha de centro e quando ia para se retirar, agradeci:
- Muito obrigado Cindy.
- De nada por isso – respondeu com mais simpatia ainda.
Comecei a constatar que aqui as expressões verbais também são diferentes…mas muito agradáveis. Sentia haver pureza no trato e uma amabilidade natural no gesto.
Fiquei sozinho na sala e enquanto tomava o café, ia observando as fotografias colocadas nas paredes, mostrando a actividade da empresa, as instalações de produção e os painéis publicitários.
Algumas pessoas que passavam no corredor manifestavam intenção de entrar na sala, mas dado a minha presença, davam-me os bons dias e retiravam-se. Passados alguns minutos, surgiu a simpática Cindy, convidando-me a acompanhá-la ao gabinete do Sr. Director.
Acompanhei-a pelo extenso corredor caminhando atrás dela e observando os elegantes movimentos do seu corpo, reforçados pelo efeito dos altos saltos dos sapatos. Muito elegante esta Cindy.
Chegados à porta do gabinete, bateu com as nozes dos dedos e fez-me sinal para entrar. Saiu, sem antes trocarmos um afectuoso sorriso, dizendo-me que, num momento estaria já aí o Director.
E assim foi. De uma porta lateral, surgiu o Dr. Janela a estender-me a mão enquanto pedia desculpa pelo atraso, mas o trânsito estava demais…cada vez pior…não se sabendo aonde isto iria parar.
Para mim não havia qualquer problema já que o hotel onde estava hospedado era no outro lado da avenida. Elogiou a minha sorte e lamentou a sua tormenta.
O gabinete era sumptuoso. Mobiliário clássico em madeira nobre, toda maciça e cadeiras forradas em pele de altíssima qualidade. Fiquei deslumbrado.
Sentámo-nos e começámos a falar do trabalho que me trazia aqui. Esta semana estava assente que eu me dedicaria ao planeamento dos trabalhos em conjunto com um dos seus colaboradores, e na próxima semana executaríamos os trabalhos entretanto planeados, na instalação de produção situada noutra cidade, a uma centena de quilómetros daqui, da capital. Nessa altura já cá estaria o resto da minha equipe , que em conjunto com os técnicos locais, executariam a alteração ao processo produtivo da referida instalação, objecto da nossa presença.
Para já reuniríamos todos os dias às catorze horas para avaliar a planificação, analisar os constrangimentos, verificar a logística, pretendendo antever tudo o que de mais pudesse influenciar a realização do nosso trabalho. Começaríamos hoje mesmo.
O Dr. Mendes Janela pegou no telemóvel para fazer uma chamada. Assim que atenderam do outro lado, disse em tom autoritário:
- Alcino…vem ao meu gabinete! – e desligou.
Entretanto foi-me explicando que o engenheiro Alcino era a pessoa com quem eu iria trabalhar durante todo este período, na dita planificação.
Daí a pouco apareceu o Alcino. Fomos apresentados e cumprimentámo-nos. O Dr. Janela fez questão de explicar minuciosamente o objectivo do trabalho e a eficiência com que o mesmo teria de ser feito. Falhas…eram inadmissíveis. Depositava toda a confiança, mas também toda a responsabilidade em nós.
Pareceu-me que o Alcino tinha antecedentes de laxismo, e este era um severo aviso para a sua pessoa. Saímos do gabinete do Director e ao caminharmos para aquele que iria ser o meu local de trabalho, perguntei ao Eng. Alcino:
- Você já tem alguma coisa feita?
- Aiiiinda! – exclamou em tom comprometido.
- Desculpe…não entendi. Aiiinda…o quê? – pedi para esclarecer.
- Ainda não! – esclareceu.
- Nada? – reforcei.
- Nada mesmo – concluiu o Alcino.
Agora que estava completamente esclarecido, comecei a interiorizar o que me apareceria pela frente. Entrámos numa sala de grandes dimensões, cujas paredes estavam forradas de estantes carregadas de dossiers. Numa enorme mesa estavam já abertas algumas pastas com aspecto de terem sido desfolhadas à pressa numa precipitada busca de elementos. Sentámo-nos à mesa. Eu de um lado e o Alcino no outro. Empurrou um dossier na minha direcção e disse com voz esganiçada:
- Está aqui tudo. Esta é a sua “bíblia”.
Puxei a pasta para mais perto e passando a vista aleatoriamente pelo conteúdo da mesma, constatei já ter em minha posse a informação aqui contida, e observei:
- Estes dados já os tenho comigo. Foi isto que vocês me enviaram para Lisboa.
- Oh…melhor ainda! – exclamou o Alcino com satisfação – nesse caso já temos o trabalho feito.
Abri o meu portátil e pedi que se sentasse ao meu lado. Liguei o computador e comecei a mostrar-lhe o trabalho que já tinha preparado. Os olhos de Alcino brilhavam de satisfação.
- Tá tudo aí…tá tudo aí!
- E os materiais onde estão? – perguntei.
- Vão chegar! – exclamou, quase guinchando.
- Vão chegar? Quer dizer que ainda não chegou cá nada?
- Já chegou tudo…falta só subir – respondeu na maior das calmas.
- Vão subir para onde? – questionei com evidente preocupação.
- Sim. Vão logo para a fábrica. O transitário trata disso – concluiu.
- Então é melhor eu imprimir o cronograma que tenho aqui e analisamos em conjunto, pode ser?
- Siiiimm…mas hoje não. Tenho que ir à clínica. A minha mulher tá passando mal, e a deixei na clínica pra fazer uns exames. Agora vou lá. Volto logo.
E saiu.
A porta ficou aberta. Comecei a sentir sede. Precisava urgentemente de beber água. Caminhei pelo corredor olhando para um e outro lado, e para minha felicidade, cruzei-me com Cindy. Pedi-lhe para me dizer onde podia encontrar uma garrafa de água, e ela levou-me a uma copa onde num frigorífico estavam várias garrafas, informando-me que era melhor eu levar uma garrafa e um copo para a sala onde me encontrava a trabalhar. Pelo caminho ia recebendo e distribuindo bons dias, aos quais me respondiam com um “bom dia sim…obrigado”. Depois perguntei a Cindy onde poderia imprimir uns documentos, ela conduziu-me à sala onde trabalhavam os informáticos e apresentou-me o Nuno, a pessoa ideal para me ajudar em tudo o que tivesse a ver com computadores.
O mobiliário e o equipamento informático eram do melhor que existia actualmente no mundo. Nem na Europa se conseguia encontrar muitas empresas com equipamento de tamanha qualidade. Era tudo topo de gama. Sinceramente, estava impressionado.
Com a ajuda do Nuno, rapidamente imprimi toda a documentação, e passei o resto da manhã a ver as pastas do projecto e a comparar o seu conteúdo com o meu cronograma. Confirmei todos os itens e pareceu-me que pouco mais haveria que fazer, a não ser aguardar pelo eng. Alcino ou falar com o Director.
O grande volume de trabalho seria na unidade de produção, e na minha perspectiva seria para lá que eu me deveria deslocar o mais rápido possível.
Depois do almoço reapareceu o Alcino e transmiti-lhe a minha intenção de nos devermos deslocar para a fábrica. Teríamos reunião às catorze horas, e isso mesmo eu transmitiria ao Director. Ele concordou.
E o Director Janela achou a ideia muito positiva. Assim no dia seguinte viajei com o eng. Alcino para a cidade onde se situava a unidade de produção da empresa. Saímos da capital às quatro horas da manhã para evitar a barafunda do trânsito e chegámos por volta das onze horas. Indicaram-me as instalações onde ficaria alojado e fomos almoçar. Depois do almoço reunimos com a direcção-geral da unidade e estabelecemos o calendário de trabalho: uma reunião às oito e quinze com a engenharia, outra às treze e trinta com a produção, e ainda outra às dezasseis horas com a task-force da qual eu fazia parte integrante.
O nosso local de trabalho situava-se num pavilhão a meio caminho entre o edifício administrativo e a área de produção. Para fazer este percurso era necessário passar por três postos de controlo e estar devidamente identificado e equipado com a farda de trabalho.
Partilhava uma sala com outros dois engenheiros, a qual dava acesso a outro compartimento onde trabalhavam seis técnicos especialistas.
Aqui existia uma rede informática, onde uma única impressora situada numa outra sala um pouco distante destas, era partilhada por nós todos. Cada vez que alguém “printava” um documento, tinha que sair do seu posto de trabalho, atravessar o pavilhão e entrar na sala onde estava a impressora. Aqui trabalhavam dois funcionários administrativos de idade avançada, que tiravam as fotocópias e distribuíam afectuosos cumprimentos.
A minha chegada fez aumentar o número de documentos a imprimir, já que para todas as reuniões eu teria de levar documentação actualizada e distribuir por todos os presentes. No meu segundo dia de estadia o tonner da impressora ficou vazio, e assim já não foi possível distribuir mais informação actualizada, em papel.
Simpaticamente foi-me pedido para ter paciência, e que este problema seria resolvido rapidamente. Assim, na primeira reunião do dia seguinte, actualizámos a informação em cima do último documento produzido anteriormente. Alguns funcionários protestaram com a demora da substituição do tonner, mas o engenheiro chefe informou que o armazém já estava informado e a tratar do assunto.
Na segunda reunião, comunicou-se à equipe de produção que infelizmente não trazíamos dados actualizados em forma de papel devido a problemas na impressora, mas que no dia seguinte ficaria tudo normalizado. O Director de Produção disse que poderíamos enviar a informação por e-mail e que ele próprio encarregaria alguém do seu sector para a imprimir e fazer-nos chegar os mapas até o problema estar resolvido. Para nós e para eles este problema estava ultrapassado.
Na terceira reunião desse dia a situação agravou-se quando um dos técnicos especialistas ameaçou recorrer à presidência da administração, caso o problema do cartucho não fosse resolvido até ao meio dia seguinte.
Mais uma vez o engenheiro chefe informou que estavam a fazer todos os esforços para adquirir o tinteiro ou cartucho…como lhe queiram chamar…mas tinha sido um erro do armazém que não tinha processado a encomenda, quando o stock baixou do mínimo.
Durante o dia seguinte, ninguém falou no assunto, tendo em conta o empenho das chefias em ultrapassar o problema, o qual já provocava evidentes sinais de estado de nervos nas pessoas envolvidas. Mas o tonner da produção também acabou e ambos os departamentos passaram a conviver com a mesma dificuldade. A solução passou a ser cada um actualizar os dados na última folha existente, e assim tudo o que era espaço em branco, passou a estar preenchido com apontamentos em diversas cores, de modo a não provocar maior confusão.
Era manifesta a cumplicidade dos dois departamentos na pressão sobre o armazém e o sector de compras, e assim já ninguém incomodava as chefias com este problema.
Custava-me a crer que uma empresa com o elevado nível de sofisticação que estava patente na sua sede, na capital, pudesse aqui apresentar tamanha dificuldade para a substituição de um tinteiro na impressora, e ao mesmo tempo, porque a mesma e única impressora servia tanta gente.
No dia seguinte, logo na primeira reunião, após a análise dos trabalhos, já poucos conseguiam ler o que tinham escrito nos dias anteriores, e menos espaço ainda sobrava para acrescentar fosse o que fosse, já que as costas das folhas estavam já cheias de gatafunhos.
Antes de dar por finda a reunião, o engenheiro chefe perguntava sempre se alguém tinha algum assunto a acrescentar. Um dos presentes levantou-se e voltou a pôr a questão do cartucho. De imediato o engenheiro também se levanta e pergunta:
- Ó Mesquita? Tu pensas que eu ando aqui a brincar com esta situação? Pensas isso?
- Não chefe…mas eu tou a ficar com problema – respondeu o Sr. Mesquita, arrastando a voz, com evidentes sinais de cansaço, devido à idade avançada.
- E achas que eu não ando a fazer tudo para resolver este problema? Este problema é muito grave, ok?
- Não é isso que eu tava a querer dizer…
- Olha!…olhem vocêses todos!…essa preocupação, eu levo todos os dias à reunião da direcção geral – gritava o chefe, deixando transbordar a sua elevada exaltação – podem até perguntar à engenheira Amélia…foi ela ontem que fez a acta da reunião…e ficou lá registado, agora vocêses querem que faça o quê? O problema agora tá lá na directoria!
O silêncio encheu a sala depois do engenheiro chefe parar de gritar e de bater com a palma da mão na mesa. Mas o Sr. Mesquita ainda não tinha terminado de expôr as suas razões e acrescentou:
- …é que eu esqueço que esse maldito cartucho tá vazio, mando imprimir e depois faço aquela caminhada toda e não tem lá nada, depois volto e esqueço que esqueci…e volto lá outra vez, chego mais cansado ao fim do dia de caminhar pra lá…do que trabalhar…mas comigo esta empresa não pára mesmo.
Uma delícia este Mesquita.
Mas a empresa quase parava mesmo, pois o Director-Geral decidiu que fosse feito um levantamento de todas as necessidades de cartuchos para impressoras e fotocopiadoras, antes de accionar a encomenda.
Felizmente, num golpe genial, o eng. Alcino depois de ir novamente à clínica visitar a esposa, decidiu passa na Sede da empresa na capital e subir com um montão de cartuchos para todos os gostos e feitios.
O trabalho só atrasou uma semana.
Texto original
Autor: João Carvalho
segunda-feira, 11 de maio de 2009
46 segundos de picada Huambo - Lubango
Sozinho pelos confins de África. Para trás já estavam feitos 600 Km entre Luanda e Huambo. Seguiram-se mais uns 400Km e 7 horas de viagem até ao Lubango. Mais umas garrafas de agua, uma sandocha e muito cuidadinho para não furar um pneu. Seriam umas 11h da manhã quando peguei na camera e resolvi filmar. Mas o Quê? Este bocadinho de estrada foi do melhor. Pela frente deparei-me com enormes subidas e descidas em que a chuva cavou enormes valas, em que os camiões com que cruzava marcavam o passo. No fim de cada descida, uma ponte, ou o que se poderá chamar como tal. Mais adiante, em segundos, o sol desapareceu e uma escuridão caiu não se sabe de onde. Raios e faícas caíam de todo o lado, e uns enormes estrondos de trovões amedrontaram o impávido viajante. A seguir uma forte chuvada deixou impenetrável a caminhada.
Ás vezes, penso, não sei o que faço aqui. Mas gosto disto. Ah...cheguei bem e com sol. Também com muita poeira, fome e uma sede de arrasar. Nada que uma N'GOLA gelada não fizesse passar.
sábado, 28 de março de 2009
MATALA (HUÍLA) - ONDE O TEMPO FICOU PARADO
Lá atrás onde está a grua, construía-se um edificio megalonamo que será a nova estação de comboios, se alguma vez for terminado. Os chineses foram-se embora porque o dinheiro acabou...(disseram-me)
terça-feira, 24 de fevereiro de 2009
Poemas de espera e ausência
I
No sofá…
Sentados de mãos dadas
E dedos entrelaçados.
Sorrisos tímidos de meninos que roubam rebuçados
e olhos penetrantes
que convidam ao deslize dos amantes.
E dizem: já está!
Corpos que se apertam num intenso olhar
Ruborizam as faces e aquece a alma.
Doce calmaria transbordante
Anseio e chama nem sempre calma,
Incendeia o corpo, e já fumegante
Leva os amantes a amar.
Deitada
Descoberta e destapada
Mesmo sem nada
Submetida a uma massagem de amor!
Costas expostas e ventre quente.
Corre o mel e o suor
Numa suave e louca vertente.
II
Passei por lá e não te vi.
Fiquei a olhar,
a pressupor o teu cheiro e o teu sorriso
que não conheço,
tal e qual o muito de ti.
Mas ironizo
e confesso, indeciso,
que regresso.
Quem sabe um dia...
cansado e triste,
deixado em vão
venha a razão
e não me assiste
resistir a tal melancolia!
Saberás então o sentido destas palavras
o luto e as mágoas...
da luta nas cristas...e nas cavas.
III
Sinto o teu olhar,
amedrontado,
como se os meus olhos estivessem frente a ti,
e os teus desviados para nenhures.
Sinto os teus instintos doces e animalescos, mesmo sem te ver!
É nesta ausência de tudo e nada
que a minha memória deambula,
de eterno prazer.
Originais de JC