Desde tenra idade que o sonho do pequeno Job Jeremias era ser serralheiro. Um dia ouviu o pai a comentar com uns vizinhos: “quem ganha bom dinheiro mesmo, é serralheiro mecânico”. E nunca mais se esqueceu destas palavras.
Embora nem sequer soubesse o que era um serralheiro, e muito menos o que fazia um serralheiro – aquela frase ficar-lhe-ia gravada na memória para o resto da vida.
Ainda menino de escola, quando alguém lhe perguntava o que ele queria ser quando fosse grande, a resposta era pronta e imediata – serralheiro mecânico. Nem piloto de aviões nem jogador de futebol. Tinha que ser serralheiro mecânico, e não admitia discussão
Talvez não fosse de todo estranho, o facto de no fundo da sua rua haver uma oficina de reparação de bicicletas e motorizadas, e o Job Jeremias passar por lá, muito do seu imenso tempo livre na brincadeira e até a fazer pequenos recados aos homens que aí trabalhavam: levar cerveja e cigarros.
Seria bem provável que lá tivesse ouvido pela primeira vez o termo da sua ambição, depois reforçado pelo comentário do pai.
Quando os mais velhos estavam bem-dispostos e com pouco trabalho, ensinavam Job a pegar num alicate e a dobrar arame, para que ele aprendesse a fazer bicicletas em miniatura. Num ápice, ele passou a fazer motas, bicicletas, jipe e camiões, numa tal perfeição que deixou os mais velhos surpreendidos e envaidecidos.
Para Job a escola acabou cedo. Fez só o básico. O pai faleceu e a mãe não tinha condições para manter quatro filhos na escola. Ela começou a vender pão pelas ruelas do musseque e Job Jeremias e os três irmãos mais novos iam atrás dela, brincando e ajudando a mãe quando ela o chamava.
Um dia, ao passarem junto da oficina das motorizadas e bicicletas, um dos mecânicos mais cota chamou-os e pararam para conversar:
– Olha senhora, esse menino leva jeito prá mecânico! Melhor mesmo é a senhora deixar ele aqui prá aprender – disse, apontando para o filho mais velho.
– Acho que este menino tem jeito, mais é prá vadio! – respondeu a mãe.
– Eiii senhora…não fala assim…esse garoto tem talento! – intercedeu o cota.
– Ele aí?…no meio de vocêses fica mais vadio ainda – insistiu a mãe.
– Deixa ele com a gente. Vai ser um bom serralheiro mecânico.
Os olhos de Job encheram-se de brilho e arregalaram-se de tal maneira que parecia querem-lhe saltar das órbitas. Aproximou-se da mãe e disse:
– Fico agora mesmo! – impôs.
E ficou.
Primeiro atribuíram-lhe tarefas simples, tais como, lavar peças, limpar os diversos utensílios e arrumar a oficina no fim de cada dia. Progressivamente começou a aprender o nome correcto de todas as ferramentas, saber para o que serviam e como as utilizar. Ao fim de três meses já fazia pequenos trabalhos de diminuta responsabilidade. Ensinaram-lhe primeiro a desmontar rodas e guarda-lamas e montá-las, e a reparar pneus furados. E assim, para compensar o seu empenho e dedicação, foi-lhe conferido um pequeno salário.
Era a primeira vez, desde a morte do pai, que entrava em casa algum dinheiro, sem ser fruto do parco negócio da venda de pão que a sua mãe continuava a fazer pelo musseque, cada vez com mais dificuldade e maior concorrência.
Apesar dos seus doze anos de idade, Job sentiu um enorme orgulho quando entregou o dinheiro à mãe. Ela abraçou-o, e sem conseguir conter uma lágrima, disse:
– Agora, tu não é só o meu filho, tu é o homem da casa!
O menino pareceu entender a responsabilidade desta nomeação. Olhou para os irmãos que brincavam na rua com os carrinhos de arame que ele mesmo tinha feito, e depois comentou:
– Sim…vou ser mesmo.
E assim passou cerca de um ano. Á medida que crescia aumentavam os seus conhecimentos de mecânica e amadurecia para homem.
Um dia apareceu na oficina um agente da polícia de trânsito empurrando a motorizada pela mão. Os cotas tinham tomado umas cervejas e acabaram a dormir no barraco das traseiras. Job estava sozinho a trabalhar, e quando viu surgir a autoridade foi em sua ajuda.
– Não trava – disse o agente.
– Eu dou um jeito – respondeu Job prontamente.
Nada mais fácil. Prendeu o cabo que estava solto no travão de pé e afinou o travão da frente. Quando já dava por terminado o seu trabalho, o polícia perguntou:
– Quantos anos tens tu garoto?
– Ahh…vou fazer uns catorze! – exclamou, sorrindo com orgulho.
Nesse meio tempo surgiu meio a cambalear um dos patrões, acabado de acordar com o barulho do motor, quando Job pôs a motorizada a trabalhar. O polícia virou-se para ele e disse:
– Esse menino não tem idade para trabalhar…isso é exploração e dá multa. Até pode dar o fecho do estabelecimento!
E Job ficou sem emprego.
Deixou de ir á oficina. Os cotas explicaram que, afinal, era perigoso dar trabalho a garotos, até mesmo que fosse só para ensinar, e Job não podia continuar lá. Só podia voltar lá quando fizesse os catorze anos, e com um papel assinado pela mãe a dar autorização para poder trabalhar.
Chegou a casa, triste e cabisbaixo. Quando a mãe lhe perguntou o que se tinha passado, o menino agarrou-se a ela e desatou a chorar compulsivamente.
– Fez asneira, filho? – perguntou a mãe.
– Não mamã…nada – respondeu entre dois soluços.
– Então?
– O polícia não deixa eu trabalhar lá…ameaçou fechar a oficina, e o mais velho diz que eu tem que ficar à espera dos catorze anos.
– Ehh…não chora por isso menino…logo logo vai voltar lá…
Job esfregou ambas as costas das mãos nos olhos, e depois de os limpar, sorriu e apertou a mãe com mais força ainda.
– …e agora vai brincar com os teus irmãos…mais logo a gente vai vender o resto do pão.
E voltou tudo ao antigamente. Todos os dias, antes das seis da manhã, mãe e quatro filhos saiam de casa para a venda do pão pelo musseque. A mãe carregando o pão num enorme alguidar de plástico na cabeça, e agora Job já ajudava, levando também ele, um saco às costas. Aos clientes habituais, apanhados por esta surpresa, a mãe contava que o filho iria continuar a trabalhar logo que fizesse os catorze anos. Os mais velhos compadeciam-se pela situação e os mais novos troçavam da mesma. Afinal o serralheiro virava padeiro.
Job sentia-se ferido no seu orgulho, mas não respondia às provocações. Às vezes apetecia-lhe dar uns tapas naqueles que zombavam dele, mas a mãe chamava-o à razão e ele passava a ignorá-los.
Durante o dia, Job nada mais fazia do que andar pelo musseque. Caminhava longas horas, umas vezes sozinho, outras vezes acompanhado por um dos irmãos.
Num desses passeios, foi até a um terreno onde costumava jogar futebol com os amigos. Mas para sua grande surpresa, já ninguém mais podia lá jogar à bola. Estavam a fazer umas obras muito grandes, lá mesmo, dentro do musseque.
Vieram uns homens brancos que falavam uma língua esquisita que ninguém entendia. Chegaram muitos camiões com caixotes de ferro bem grandes, e vieram umas máquinas grandes…grandes mesmo…como ele nunca tinha visto.
Job deixou de passear, e logo que terminava a venda do pão com a mãe, ia passar o resto do dia ali com os amigos, a olhar para toda aquela movimentação.
Primeiro começaram os pedreiros a fazer uma vedação de arame farpado à volta do terreno, enquanto lá dentro, umas máquinas a que ele e os outros garotos chamavam de girafas, tiravam os caixotes de cima dos camiões e pousavam-nos no chão. Mais tarde veio a saber que aqueles caixotes se chamavam contentores, e afinal, a girafa tinha o nome de grua.
Um dia começaram a aparecer camiões carregadinhos de tábuas de ferro. Mas não eram lisas e direitas como as das portas. Umas eram parecidas com as linhas do caminho-de-ferro e outras eram bem mais estranhas.
Começaram a construir um barracão muito grande. Nada tão alto tinha alguma vez sido feito no musseque. Os camiões traziam muito ferro, e as máquinas grandes punham o ferro de pé.
Os garotos assistiam e faziam prognósticos.
O mistério ficou desfeito quando apareceu pendurada num poste uma placa, onde estava escrito:
“Precisam-se de pedreiros, serralheiros e soldadores, e ajudantes também”
Os olhos de Job voltaram a brilhar. Correu para casa e contou à mãe a grande novidade. Agarrou a mãe pela mão e pediu para ela ir ver, e falar com o chefe de lá, para ele ir trabalhar. A mãe disse que ainda faltava uns dias para ele fazer os catorze anos, e ainda era cedo, não valia a pena ir já. Ficou prometido, que logo no dia a seguir aos anos, iriam os dois para falar com o chefe.
E apareceria alguém que vai mudar a vida de Job.
O chefe Ferreira, como toda a gente o tratava, já estava em Angola há mais de vinte anos. Mas muito mais! Nem ele próprio sabia ao certo há quanto tempo por ali andava. O que ele sabia é que já não podia passar sem isto, e regressar de vez a Portugal estava fora de questão.
Tinha mulher e filhos em Sacavém, e outra mulher e mais filhos no Cacuaco. Ambas as famílias sabiam da existência uma da outra, e não havia maca. Passava as férias em Portugal, e a cada viagem levava um dos filhos angolanos, desde que não estivessem em período de aulas. O mais difícil foi quando a mulher de Portugal soube da existência dos três rapazes angolanos, porque durante anos sabia só da existência de um. Houve ameaça de separação e até de divórcio. Mas os filhos portugueses conseguiram apaziguar as coisas e com uns “tenham lá juízo e deixem-se disso”, tudo voltou a ser o que era.
O Ferreira falava pelos cotovelos, com lentidão mas em bom som. Pouca gente tinha paciência para o ouvir, mas ele falava na mesma. De nada servia pedir para se calar. Ele continuava a falar em voz alta consigo próprio, ria-se para si mesmo, e nada o fazia parar a não ser que quisesse.
– Quem não quiser ouvir que tape os ouvidos! – exclamava, mesmo que ninguém lhe perguntasse alguma coisa.
Tinha sido nomeado para a equipe de recrutamento e selecção do pessoal, em conjunto com outro encarregado angolano – o Pacavira, e não lhe faltavam dotes de perito na matéria:
– Assim que os gajos abrem a boca, tiro-lhes logo a fotografia – dizia com orgulho e vaidade.
No lado de fora da vedação, havia desde as sete da manhã uma enorme agitação. Uma extensa fila de candidatos aos postos de trabalho disponíveis, aguardavam impacientemente que começassem a ser chamados para o ambicionado emprego.
Assim que saiu do contentor que funcionava como refeitório, após tomar o mata-bicho, o Ferreira estancou-se, e ao ver a dimensão do burburinho, gritou:
– Mas estes gajos sabem o que é que estão a fazer?
Chamou dois homens dos que guardavam a entrada do estaleiro e disse-lhes:
– Avisem essa malta que hoje só vamos admitir pedreiros, ok? Amanhã serralheiros, ok? O resto vai ficar para a semana, ok? – gritava pausadamente, para que não restassem dúvidas.
Os outros acenaram com a cabeça e puseram a circular a informação. Mas de pouco serviu, porque ninguém arredou pé.
O Ferreira acendeu um cigarro, e compôs o capacete de modo a vedar a fresta por onde entrava o sol que lhe batia nos olhos, por cima dos óculos escuros. Assim via melhor a dimensão do alvoroço. Decidiu caminhar para junto da fila e gritou:
– Hoje só vamos meter pedreiros! Quem não é pedreiro volta amanhã, ok? Estamos entendidos? – reforçou.
Alguns, poucos, começaram a desmobilizar, saindo da fila, mas ficando nas redondezas para assistir ao desenlace desta confusão.
Quem também abandonou a fila foi Job Jeremias. Desatou a correr em direcção a casa, a ver se ainda chegava a tempo de ir ajudar a mãe. Esta e os irmãos já tinham saído, mas ele sabia qual era o percurso habitual deles e apanhou-os daí a pouco.
A mãe nem lhe perguntou onde é que ele tinha andado porque já imaginava a resposta.
No dia seguinte, levantou-se às quatro da manhã e saiu logo para o “estaleiro dos americanos” – nome com que passou a ser conhecida aquela instalação. Foi o primeiro a chegar e assinalou logo a sua vez na fila, avisando os guardas que estava à espera que chamassem para dar trabalho.
Os guardas riram-se, e meio a brincar, meio a sério, disseram-lhe que era melhor voltar para casa e ir dormir. Job manteve a sua posição:
– Sou o primeiro…hoje mesmo vou falar com o Chefe, e vou ser o primeiro serralheiro daqui! – exclamou com convicção.
A fila começou a engrossar de imediato. Ainda não eram sete da manhã, e mais de duzentos candidatos já se perfilavam na tentativa de alcançar o desejado posto de trabalho.
Hoje o esquema das entrevistas estava melhor organizado. Entravam dez candidatos de cada vez. Um dos guardas conduzia-os ao contentor que servia de sala de entrevistas, e esperavam à porta…massacrados pelo intenso calor que se fazia sentir.
Job Jeremias resistiu a todas as tentativas de ser ultrapassado na fila e refutou todas as provocações e insinuações de que foi alvo.
Às sete e meia em ponto, saiu um berro do contentor:
– Entra o primeiro! – era a voz do chefe Ferreira.
O miúdo bateu à porta, espreitou e entrou sem receio, apresentando-se:
– Sou Job Jeremias…serralheiro mecânico!
Os membros da equipe de selecção olharam uns para os outros e sorriram. O chefe Ferreira não se conteve:
– Enaa…isto hoje começa bem! – e riu-se.
O outro, o Pacavira, também riu desmesuradamente.
– Ora, então tu és o Jeremias?
– Sim senhor, Job Jeremias…serralheiro mecânico! – exclamou com elevação.
Ambos os entrevistadores ficaram em silêncio, perturbados com a convicção do rapaz. O Ferreira voltou à carga:
– Sabes trabalhar com um martelo?
– Sim senhor! – respondeu peremptoriamente.
– Sabes o que é uma marreta? – insistiu o Ferreira.
– Sim senhor…é um martelo mais pesado! – nada mais fácil.
– Sabes apertar um torno de bancada?
– Sim senhor…aperto com as duas mãos quando é preciso mais força.
– Quantas mãos são precisas para agarrar num alicate? – insistiu o Ferreira
– Vai do tamanho do alicate…se for dos grandes tem que ser as duas! – esclareceu
– Bonito serviço! – exclamou o chefe Ferreira – basta só olhar para ti para ver que és serralheiro – disse com ironia. E acrescentou – mas só por seres o primeiro a ter cá chegado, vais ter um prémio…ficas ajudante, ok? Estamos entendidos?
– Sim senhor! Sim senhor!
– Começas amanhã!
Um brilho maior que o do sol espelhou-se na cara de Job. Saiu do contentor desorientado de alegria. Cambaleando de felicidade, descreveu um círculo trocando as pernas, antes de conseguir ver onde era a saída por onde tinha entrado. Desatou a correr e só parou quando chegou ao pé da mãe.
– Amanhã trabalho lá…o senhor chefe Ferreira me aceitou! – exclamou mantendo o braço apontado para o céu.
– Tá doido menino! Que chefe é esse?
– É no estaleiro dos americanos…amanhã começo lá a trabalhar de ajudante – explicou como se da maior conquista se tratasse – e depois vou ser mesmo serralheiro mecânico.
Era tal a convicção que colocava na explicação que, se alguma dúvida restasse, ela ficaria naturalmente dissipada.
No dia seguinte não haveria recrutamento. A opção foi integrar os trabalhadores já admitidos, dar-lhes o fardamento e explicar minuciosamente as regras de segurança da obra.
Essa tarefa foi incumbida aos dois encarregados. Os trabalhadores foram divididos em dois grupos. Os pedreiros ficam com o Pacavira, e os serralheiros com o Ferreira. Neste último grupo estava o único ajudante até agora admitido – Job.
Todos devidamente fardados, escutavam com a maior atenção as palavras de cada um dos chefes. Mas era o Ferreira que gritava em alto e bom som:
– Eh pá…vocês não se ponham a inventar…ainda se aleija alguém e depois estamos todos lixados. Primeiro vem sempre a segurança, ok? - e acrescentava - … seifeti fares-te, ok?
– Siiimmm – respondiam em coro.
– Estamos entendidos?
– Siiimmm – repetiam.
– Então…agora vamos ao trabalho.
Seguiram os passos do Ferreira em direcção à ferramentaria. Aqui seria distribuída uma caixa de ferramenta individual a cada um, e depois foram apresentados aos respectivos chefes de equipa, que lhes distribuiriam os trabalhos.
Só Job Jeremias não foi integrado no trabalho da serralharia. Continuou a caminhar atrás do chefe Ferreira à espera que este lhe atribuísse alguma tarefa. Vendo que estava a ser esquecido, colocou-se ao lado do chefe, de modo a atrair a atenção deste. O Ferreira olhou de lado para o rapaz e parou de caminhar. Voltou-se para ele e disse:
– Tu vais ali para aquele contentor separar umas caixas de parafusos, porcas e anilhas. Sabes o que é isso?
– Sim chefe! Eu sei! – exclamou com entusiasmo.
– Ok…por agora vai ser esse o teu trabalho. Estamos entendidos?
– Sim chefe!
O tempo ia passando e a alegria de Job aumentava de dia para dia, na esperança de poder vir a ser serralheiro. Sempre que podia, ficava a olhar os outros, admirando o seu trabalho. Uns cortavam chapa e vigas com o maçarico, enquanto outros davam acabamento aos cortes com as rebarbadoras.
O chefe Ferreira é que nunca estava desatento. Cada vez que atravessava a área onde o pessoal estava trabalhar, repetia os mesmos conselhos:
– Não quero que ninguém saia daqui aleijado! Muito cuidadinho com as rebarbadoras, ok? Seifeti fares-te, ok?
Como resposta obtinha sempre o mesmo coro:
– Siiimmm chefe!
Os meses iam passando, a obra ia crescendo e o volume de trabalho não parava de aumentar. O pessoal era já bastante, e o movimento no estaleiro aumentava desenfreadamente. A oficina central já estava construída, do armazém faltava pouco para concluir e a construção das habitações onde o pessoal iria residir evoluía a bom ritmo.
O chefe Ferreira queixava-se que já não dava para as encomendas. Almoçava à pressa, sem parar de se lastimar:
– Vocês vejam só? – comentava um dia ao almoço – hoje apareceu-me um gajo que já faltava à duas semanas.
Fez uma pausa para observar se alguém lhe estava a prestar atenção e continuou:
– Chegou como nada se tivesse passado, e começou a explicar-me que tinha tido muitos problemas, mas que agora estava tudo resolvido, e então, ia trabalhar a sério!
Despertados pela curiosidade, os colegas que estavam mais próximo pararam de comer para lhe prestar a merecida atenção. O Ferreira vendo que tinha captado o interesse da plateia, prosseguiu:
– Chamei-lhe a atenção. Disse ao gajo para ter juízo e não repetir a gracinha senão ia para o olho da rua. Ele sempre a dizer que sim…sim senhor…sim senhor. Então não é que o gajo, agora antes de vir almoçar, me aparece com o impresso a meter uma semana de férias a partir de amanhã?
Todos se riram com a exposição do chefe. Era de facto um bom actor, este Ferreira. Quem não entendeu nada da história foram os americanos que estavam sentados na outra ponta da mesa. Mas alguém traduziu, e eles acabaram por achar piada ao sucedido.
Vendo que tema da conversa estava a agradar aos colegas, continuou:
– Agora tenho aí um puto que é uma malha do caraças! O Job…fez há dias catorze anos. Olhem que eu ando nisto há muitos anos, e não me lembro de ter visto um miúdo assim, para trabalhar com vontade! – exclamou com profunda admiração.
Alguns dos presentes abanaram a cabeça em sinal de confirmação, visto já terem reparado nas capacidades do garoto. Mas o Ferreira não parava de falar:
– Mas estão aí alguns que até adormecem a andar…é cá com cada um!
Alguém o interrompeu:
– Oh Ferreira, mas deves ter aí também uns gajos do contra. Eu vi que num dos biombos dos soldadores alguém escreveu: “In land of blind, one eyed is king”, sabes o que isso quer dizer, não sabes?
– Em terra de cegos, quem tem um olho é rei, não é isso? – questionou o Ferreira.
O colega confirmou com um aceno de cabeça, e o Ferreira esclareceu:
– É que eles já sabem uma coisa que vocês não sabem! – exclamou com ar de desafio.
Esta observação fez com que quase todos parassem de comer e se concentrassem no Chefe Ferreira, aguardando pelo esclarecimento total do motivo daquele escrito na serralharia. E foi logo a seguir:
– É que eu só vejo de um olho. Este aqui – apontou com um dedo para a vista esquerda – é de vidro.
Todos os presentes riram a bom rir. Primeiro os que falavam português, depois os estrangeiros, após a respectiva tradução ter sido feita.
Há medida que acabavam de almoçar, as pessoas iam-se levantando para dar o lugar a quem esperava. Este espaço estava destinado aos encarregados e aos engenheiros, fossem eles angolanos, portugueses ou americanos. O restante pessoal almoçava num outro espaço, mais amplo, mas também já insuficiente para a quantidade de gente que estava na obra.
Aproximava-se o fim-de-semana, e constituíam-se vários grupos entre os expatriados portugueses e americanos, organizando-se passeios à praia e almoçaradas onde quer que calhasse, conforme o lugar fosse mais aprazível a uns e a outros.
Um dos responsáveis americanos sugeriu que se fizesse um barbeque numa praia. A ideia colheu quase a unanimidade dos presentes, mas teria que se fabricar um fogareiro para grelhar as carnes.
– Nada mais fácil – interveio o Pacavira – corta-se um bidon de duzentos litros ao meio e faz-se um excelente assador.
O próprio Pacavira encarregou-se de arranjar o bidon e tratar de fazer o fogareiro.
Encontrado o tambor de duzentos litros, aproximou-se de um dos vários chefes de equipa que tinham os serralheiros às suas ordens, e pediu para que fosse cortado o tambor a meio e ao alto, para fazer um fogareiro.
Nesse momento ia Job a passar com uma rebarbadora na mão, e o chefe de equipa gritou-lhe:
– Ei miúdo!
Job parou, e vendo que a chamada era para si, aproximou-se de quem o tinha interpelado.
– Olha…tás a ver aquele bidon…deita-o ao chão e corta-o ao meio, assim – ordenou, enquanto com a mão indicava a direcção em que pretendia o corte.
O pequeno Job, cheio de orgulho por lhe ter sido confiado um trabalho para um verdadeiro serralheiro, deitou o tambor ao chão e ligou a rebarbadora.
Assim que encostou o disco à chapa, e logo que este penetrou no interior do reservatório, sentiu-se um enorme estrondo de uma violenta explosão.
A tampa do invólucro projectou-se no ar atingindo um colega que se encontrava nas imediações, e o bidon deu um salto de tal forma violento, que embateu e perfurou a cobertura daquela área.
As chamas emanadas da explosão apanharam as pernas de Job Jeremias, fazendo-lhe saltar a roupa que trazia vestida.
De imediato surgiram extintores para apagar o foco de incêndio, e pessoas para prestar os primeiros socorros aos dois trabalhadores feridos.
Job e o colega foram evacuados para o hospital. Ele com queimaduras do segundo grau em ambas as pernas, e o outro com ferimentos e escoriações na face e no peito.
No local do acidente surgiram todos os engenheiros, encarregados, chefes de equipa e também o americano - director do estaleiro. Este ordenou de imediato um relatório preliminar e abertura de um inquérito.
Concluído o processo, veio a constatar-se que o referido reservatório continha restos de gasolina, e que nem a pessoa que o indicou nem quem ordenou o seu corte sabiam do seu conteúdo.
Assim sendo, a responsabilidade era do trabalhador que realizava o corte do bidon, por não ter tomado as devidas providencias no cumprimento das regras de segurança.
Job Jeremias foi despedido.
O chefe Ferreira apresentou a sua demissão.
terça-feira, 22 de março de 2011
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